Tu sabes qual é o mal das crianças e dos adolescentes? - Modaaz
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Tu sabes qual é o mal das crianças e dos adolescentes?

Bastante seguidamente alguém chega até mim e pergunta: tu atendes criança? E, em todas as vezes, respondo negativamente. Entretanto, considerando que estudo e trabalho com a Psicanálise, que é a ciência que tem por objeto de estudo o inconsciente, pode parecer contraditório meu posicionamento. Explico o porquê: o inconsciente, dentre suas várias características, é atemporal. Isso significa que, para qualquer sujeito, independentemente de cor da certidão de nascimento (alva como algodão, ou amarelada como dentadura de fumante), seu inconsciente não considera o tempo. Sim, marcas foram feitas, registros ficaram gravados, histórias foram vividas. Porém, o que realmente importa é aquilo que está lá no fundo da alma. Aquilo que se passou há tanto tempo que não se pode mais acessar por meio da memória. Então, qual a diferença entre receber para tratamento uma criança, um adolescente, um adulto ou um idoso? Toda!

O fato é que um sujeito adulto, ao procurar por tratamento psicológico, muito provavelmente resistiu bastante até que pudesse quebrar todas as barreiras que o impediam de fazer esse movimento. Após essa etapa de resistência, ele busca a ajuda com a convicção de necessidade, ou seja, ele tem consciência de que precisa dela.

 

Foto: Banco de Imagens/ Reprodução

Com crianças e adolescentes, todavia, a situação muda de figura. Primeiramente, crianças jamais conseguiriam, por si sós, conscientizarem-se de que precisam de um psicólogo. Elas nem sabem o que é um psicólogo. Tanto isso é verdade que, em muitos e muitos casos, as crianças que chegam à clinica acabam chamando o profissional de prô ou de tia. Quem decide que uma criança ou um adolescente deve (e tem de) fazer um tratamento, geralmente, são os pais. Nesse caso, o sujeito não chega por um desejo próprio, mas pelo desejo de um outro.

Isso, contudo, ainda não é a etapa mais difícil do trabalho. O mais difícil mesmo é implicar os responsáveis no tratamento daquele sujeito, isto é, envolvê-los com aquilo que se passa na região mais recôndita do paciente em questão. O trabalho maior, portanto, é conseguir estabelecer uma aliança com esses pais, fazendo-os entenderem que se criará um vínculo entre o profissional e o filho deles. E, definitivamente, desfazer esse vínculo poderá ser dolorido a ambas as partes, mas principalmente ao sujeito em questão. Afinal, essa aliança precisa ser firmada entre todos os envolvidos no processo. E tem mais: os responsáveis vão, necessariamente, sentir que foram causadores do que se vem passando com o paciente. Aí, geralmente, podem acontecer três situações: ou esses pais se vinculam e se comprometem com o trabalho; ou eles não suportam a constatação de suas falhas, e somem; ou ficam por um tempo mantendo o acompanhamento, mas desistem no meio do caminho.

 

Foto: Banco de Imagem / Reprodução

 

Mas tudo isso quer dizer o que, afinal? Quer mostrar que crianças e adolescentes têm um interveniente em suas vidas. Logo, aquilo que será feito em benefício ou em prejuízo deles estará intimamente atrelado a alguém, não dependendo única e exclusivamente desses sujeitos.

Entretanto, não era bem aí aonde eu queria chegar. Escrevi tudo isso para falar sobre outra coisa: a consideração. Pronto: lá vem ela, de novo, falar em consideração. Infeliz ou felizmente, essa é uma questão que tanto me ocupa quanto me preocupa.

O objetivo de tudo o que foi dito até aqui, então, é o seguinte: cada um de nós, humanos, únicos, singulares, tem seus próprios, únicos e singulares quês. Alguns gostam muito de algumas coisas que não atraem em nada o interesse de outros; alguns, por outro lado, detestam ou temem muito alguma coisa que não incomoda em nada a outros. Isso se dá por conta da singularidade, das particularidades de cada um.

O que se passa entre crianças e adolescentes, pelo que percebo, não é levado muito em conta. Crianças são cuidadas para que andem limpas e alimentadas. Seus sentimentos e suas aflições são só coisas de crianças. Todavia, para que sujeitos cresçam e tenham seus próprios quês, para que adquiram consciência sobre o que sentem, para que possam aprender a considerar as singularidades de cada um à sua volta, eles precisam, antes, ser vistos, notados, percebidos, considerados. Sim, eles precisam, antes, ser considerados. Eles precisam de que alguém dê nome para aquilo que eles sentem. Eles precisam saber que aquilo que os aflige é verídico e há de ser compreensível pelo simples fato de que eles estão sentindo. Se eles sentem, verdadeiro é. E é honesto.

É muito comum deparar com adultos que desconsideram seus próprios sentimentos. Essas pessoas creem que não deveria ter importância aquilo que elas sentem. Mas mesmo assim elas sentem. E mesmo sentindo elas desconsideram! As pessoas se desconsideram a si próprias!!! Não é algo muito bizarro? Há pessoas que ficam paralisadas por seus medos: “Morro de medo de locais públicos, onde tem muita gente, mas não sei o porquê”. “Não consigo dormir enquanto meus familiares não estão todos em suas casas”. “Não consigo relaxar se deixei louça suja na pia”! Quem se desconsidera a si próprio, é suficientemente sensível para considerar as inquietações alheias, sobretudo aquelas advindas de crianças e de adolescentes? Definitivamente, não!

Crianças e adolescentes também têm sentimentos, povo!!! Eles sentem, igualzinho a nós, adultos. Apenas o sofrimento delas está relacionado com o momento delas. As suas perdas – que podem ser diversas, como o bico, o “nana”, as fraldas, os coleguinhas da escola, os amigos que foram embora para outra cidade, os primeiros “namoradinhos”, a psicóloga que lhes foi ofertada, mas que, de repente, e sem saberem bem o motivo, dela se veem privadas – causam-lhes sofrimento, perceptivelmente ou não! Evidentemente que as perdas são necessárias e muitas delas altamente constitutivas. Mas isso não justifica que se desconsidere aquilo que elas sentem.

Enfim, a proposta aqui, e mais uma vez, é pensar. Pensar sobre aquilo que está em nossa cara diariamente, mas que não enxergamos. Pensar sobre as crianças e os adolescentes, vendo-os também como particulares, únicos, singulares. Pensar que estamos todos, sem qualquer exceção, implicados no que esses sujeitos se tornarão e em como eles se posicionarão diante da própria vida, no futuro. E, cá entre nós, no futuro, quando adultos, eles se posicionarão diante de nós mesmos e diante da sociedade, cheia de mazelas, que os acolherá. Com que tipo de pessoa tu gostarias de presentear o mundo, no porvir? Pensa aí!

Franciele Andrade

francielepsico@gmail.com

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